Eu, brasileiro confesso minha culpa: viajei aos anos 1960 num tour tropicalista. De volta para o futuro, deparei com a geleia geral brasileira, agora movediça, que as redes sociais, os jornais e os odiodutos anunciam
Foto do alto (reprodução): Torquato Neto no filme A múmia volta a atacar, de Ivan Cardoso, 1972.
Jurupoca_67, 16 a 22/4/2021, ano 2
Abril
Abril se mostra em luz,
Revela meus mortos morridos
e os morituri que te saúdam.
Me alegra no entanto
esta brisa de ouro e palha.
Antônio Siúves: Moral das horas, 2013, Manduruvá Edições Especiais
“E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril”
Geleia geral (Gilberto Gil e Torquato Neto)

Opa! Vamos apear? Ora, vamos!
Mais que nunca, é preciso desafinar o coro dos contentes.
E mais que nunca é preciso desafinar os coros dos descontentes exclusivistas radicais:
o coro do negacionismo e
o coro da tribalização ideológica e identitária.
Mas abril acontece outra vez.
Folhas de ouro lavado esbatem a luz da tarde, com a primeira brisa outonal.
Quem dera pudéssemos desfrutar.
Um passeio, um cinema, um piquenique com toalha estendida e algum vinho rosado.
Mas não.
Não tem lá fora, ou tem mas não está.
Abomino anacronismos, isso de comparar épocas e eras para o bem e para o mal, misturando ideias e fatos fora de lugar.
Mas a barra tá pesada, mana, e navegar é preciso.
Sucedeu de o tempo me dar um tranco na memória.
Me mandar “de volta” aos anos 1960.
Regresso quase sessentão, outro ser que não o menino que parece ter vindo à luz em setembro de 1961, lá.
Minha máquina do tempo, você sabe, sempre tem música ligada, o que me situa e sintoniza.
Vou, viajo, chego, volto: vejamos.
O primeiro som que me chega aos ouvidos são acordes de Geleia geral (composição de Gilberto Gil e Torquato Neto, do disco de Tropicália: Ou Panis et Circenses, 1968):
♪ “Ano que vem, mês que foi
Ê bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança meu boi” ♪
Perdido no tempo e no espaço, tento entender o que se passa.
Me acalmo.
Junto cacos, compro lembrancinhas, leio jornais numa banca de revistas, ando nas ruas, bebo num botequim, compro LPs e compactos.
Tudo é muito breve.
Como a astrofísica de Jodie Foster no filme Contato, pode parecer, a ficou, que não me ausentei mais que dez segundos.
Sei que não foi bem assim, e que não vão crer no meu relato.
Mas, então, já era o torna-viagem do meu tour tropicalista.
Noto que tenho nas mão um cartaz com um velho slogan: “Pindorama, país do futuro”.
De quando mais teria saído isso?
Na estrada do tempo, na volta, tropico em 1988.
Baldeação forçada, como ocorria sempre aos doutores Tony Newman e Doug Philips no seriado O Túnel do Tempo.
A primeira coisa que consigo distinguir na barulheira é uma canção de Cazuza que uma rádio toca.
Anoto: ♪ “Grande pátria desimportante/ Em nenhum instante/ Eu vou te trair/ Não, não vou te trair, yeah” ♪ (Brasil, faixa do LP Ideologia).
Reencontro ao chegar não o céu de chumbo, não artistas de asas partidas, não o ranço de cárcere, não a naftalina da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
(Se bem que, ao contar isso aqui, posso avistar uma farsa grotesca e desmilinguida daquela Marcha nas ruas).
De volta para o futuro deparo a GELEIA GERAL BRASILEIRA que o noticiário, as redes sociais e
os ODIODUTOS anunciam.
Agora a BRUTALIDADE oficial.
Agora a FALTA DE AR.
Agora a NEGAÇÃO.
Agora o cheiro da MORTE renegada.
AQUI É O FIM DO MUNDO OUTRA VEZ.
Chego com a memória em pandarecos.
E na maleta?
Trago amostras de Formiplac.
Carrego algum céu de anil e alguma carne seca para pôr na janela.
Mas o mais bonito de tudo: trago
♪ “(…) o lindo pendão dos seus olhos/ E a saúde que o olhar irradia” ♪.
Gratia plena.
Depois ♪ Pego uns panos para lavar, leio um romance ♪, assoviando Mamãe coragem (canção de Caetano & Torquato gravava por Gal).
A música começa com uma sirene policial.
Serão ambulâncias de agora?
Em seguida, num contínuo, só, escuto o começo de Marginália II (de Gil & Torquato, LP Gilberto Gil, 1968):
♪ “Eu brasileiro, confesso/ Meu sonho desesperado/ Meu bem guardado segredo/ Minha aflição”♪.
(O arranjo de Rogério Duprat insere uns compassos do Hino da Independência do Brasil, mas tem que prestar atenção).
O título desta carta, deste número do jornal, da JU, é o refrão dessa música:
♪ “Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo” ♪
Alô, meninas e meninos que ousam ler a JU, e muito me alegram com isso, alô.
Pausa.
Pausa para lembrar que Torquato Neto foi um poeta e jornalista brasileiro, grande letrista da Tropicália.
Se matou a 10 de novembro de 1972, no dia seguinte dos seus 28 anos.
Todo mundo conhece a história de Cajuína (canção de Caetano do Cinema transcendental, 1979).
Caetano lembra neste vídeo o encontro com o pai de Torquato num hotel de Teresina.
Um ou dois anos depois da morte do filho único do defensor público Heli da Rocha Nunes e da professora primária Maria Salomé da Cunha Araújo.
Caetano de Canô não parava de chorar.
Se lembra da visita à casa de seu Heli, da cajuína que beberam e da rosa pequenina que ganhou daquele pai órfão que o consolava, ao invés.
Fim da pausa.
Voltemos à música.
Torquato & Jards Macalé fizeram Let’s Play That (LP Jards Macalé, 1972).
Toco a música. O final é assim:
♪ “E eis que o anjo me disse
Apertando a minha mão
Entre o sorriso de dente
Vá, bicho, desafinar o coro dos contentes. ♪”
O poema-prefácio COMO É, TORQUATO, de Augusto de Campos, abre a coletânea Os últimos dias de Paupéria.
Termina conforme:
“VAI BICHO
nós por aqui vamos indo
naviloucos
poucos
ocos
um beijo preso na garganta
DESAFINAR
medula & osso
O CORO DOS CONTENTES
com geleia até o pescoço”
Geleia geral:
Expressão bolada por Décio Pignatari em 1963 para definir o caldo cultural ralo, o sopão indiferenciado, a frouxidão de ideias nos movimentos culturais e artísticos e os eternos contrapesos do compadrio e da covardia em Pindorama, esta roça mental.
Mais tarde, lembra Décio, sua expressão foi transformada por Torquato “num miniprograma crítico-criativo”.
Torquato também nomeou sua coluna no jornal carioca Última Hora de Geleia Geral.
Eis a frase famosa de Décio:
“Na geleia geral brasileira alguém
tem de exercer as funções de medula e de osso”.
Modernistas, concretistas, tropicalistas tentaram exercer provisoriamente as funções: MEDULA E OSSO.
MEDULA E OSSO?
NUNCA MAIS.
ATENÇÃO: voltamos ao estado amorfo e decrépito de geleia geral, agora GELEIA GERAL MOVEDIÇA.
Há no ar um MEDO de desafinar o coro dos descontentes exclusivistas radicais e suas patrulhas do pensamento.
Há uma ESTERILIDADE GERAL (NADA SE CRIA, TUDO SE MATA) na tribalização ideológica e identitária.
Odiodutos canalizam ameaças de golpe, de morte, de cancelamento.
E estamos pelo pescoço.
E não pode haver mais dúvida:
AQUI É O FIM DO MUNDO OUTRA VEZ.

Helahoho! helahoho!
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô… Ghi — …?
A JU também é ciência

Infectologista da Nasa aborda cautelosamente criatura negacionista disfarçada de charuto de repolho. A CIA revelou que a trozoba foi cevada com toneladas de leite condensado, cloroquina e spray nasal israelense pelo Clã do Caveirão. Não se sabe para que serve a coisa. Desconfia-se, não obstante, que pode atender à mesma finalidade sugerida por membro do Clã do Caveirão para as máscaras anti-covid.
A propósito de Henry Borel
Especialistas estimam que para cada registro de criança morta por espancamento até os 4 anos, há outros 20 subnotificados no país. O sistema CID-10 do Ministério da Saúde dá conta de que ao menos 2.083 crianças foram barbarizadas dessa forma nos últimos dez anos, leio em reportagem de Roberta Jansen no Estadão.
Podres da democracia
A política sempre atraiu gente da espécie deste Dr. Jairinho, ou, diga-se, de Sua Excrescência Jumentíssima e seu clã. É um reduto de delinquência e distúrbio mental. Deve ser horrível para o político vocacionado conviver com esses “animais humanos”.
Animais humanos e homens
Os campos de concentração mostraram que o ser humano pode se converter em certas espécies do “animal humano”. “A ‘natureza’ do homem só é ‘humana’ na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não natural, isto é, um homem”, ensina Hanna Arendt.
*
Arendt também diz que os regimes totalitários revelaram à humanidade que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. O mal absoluto, lemos em seu livro clássico, “já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância, da cobiça, do ressentimento, do desejo do poder e da covardia; e que, portanto, a ira não podia vingar, o amor não podia suportar, a amizade não podia perdoar”.
*
Trocando em miúdos, toda crença na humanidade é devaneio.
Leitores mendigos
EUA e Europa alimentam na web uma profusão de periódicos, dedicados às ideais, à cultura e ao comportamento social, com que nem sonhamos. Como mostruário, dê uma olhada na coluna à esquerda do site agregador Arts & Letters Daily. O leitor brasileiro interessado precisa mendigar farelos como tico-tico. O pouco que existe no país em geral é empobrecido pelo “engajamento” editorial à esquerda identitária.
Não faz falta
Abas como “TV e famosos”, saúde e suas variantes em torno de “viver bem” atraem o grosso da audiência dos grandes portais de informação. É da época. Cultura e arte, tais terras arrasadas, sumiram. E quase ninguém sente falta.
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Além disso, as raras reservas dedicadas ao jornalismo cultural abusam dos “fatos diversos” (do francês fait divers), no jargão jornalístico o que parece extraordinário, insólito. É o que hoje “dá clique”. Nada de análises, críticas, ensaios.
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São no geral notícias sobre aparição de obras de grandes mestres e os debates sobre sua autenticidade, efemérides, o caso de uma celebridade que perdeu o gato e outra que foi a uma bacanal.
Educar e formar
À vaca fria: o jornalismo dependente do imediatismo de cliques em “fatos diversos” e repercussão nas redes sociais terá necessariamente de abrir mãos da função formadora que exerceu por muito tempo.
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Pior para jovens que precisam de bons guias para conhecer o que vale a pena: papel da crítica especializada e do trabalho de bons editores.
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Pobres moças e rapazes interessados em ler, e que precisam saber que a história não começou no ano passado.
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Infeliz de quem vive à mercê das patrulhas e perde a chance de aprender o quanto a vida pode ser enriquecida no entrechoque do pensamento com a criação ao longo do séculos.
O ex-caderno se move
O ex-caderno de ex-cultura da Folha tenta acordar? Oxalá saiba deixar de lado a porra-louquice do “vejam como estamos do lado do progressismo moral” para mirar o bom e velho jornalismo que deu à Ilustrada seu lugar ao sol.
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Enquanto isso, o Estadão piora, e O Globo? Bem, o Globo deu bananas para o jornalismo cultural faz tempo.
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O jornal dos Marinhos sempre terá como dever de casa promover as celebridades da Casa, a começar das subcelebridades da “famosa casa”, atração que hipnotiza a audiência por quase seis meses e domina o debate público.
No Prado com Vargas Llosa
Leio com atraso a coluna de Mario Vargas Llosa de 4 deste mês. Vicariamente pego carona no texto. Tento bispar a exposição Paixões Mitológicas, em cartaz no Prado até 4 de julho.
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O museu madrilenho, cujo site revisito para matar saudades, conseguiu reunir pela primeira vez as seis obras mitológicas de Tiziano idealizadas como “poesias” por meados dos 1500 e que hoje estão dispersas em vários países.
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Completam a mostra obras afins de Veronese, Allori, Rubens, Ribera, Poussin, Van Dyck e Velázquez.
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Vargas Llosa atina que somos outra pessoa ao sair de uma exposição como esta. Matuta sobre as profundas motivações que “levaram os seres humanos a criar uma arte que enriquece a vida e a eleva à altura dos nossos sonhos”.
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Mas o peruano também “expõe as limitações da realidade na qual nos locomovemos, como num cárcere em que não podemos nunca expressar de maneira plena as nossas expectativas de viver mais e melhor, realizar todos os nossos desejos, e daquilo que chamamos de cultura, arte, civilização”.
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O Nobel aproveita para contrastar os ideais da civilização com a mesquinharia das “guerras culturais” hodiernas. “[…] como parecem insignificantes o desespero com que certas minorias se empenham em exagerar suas diferenças, como se elas, que naturalmente existem, fossem o bastante fortes para destruir a solidez de uma cultura que tem suas raízes numa unidade mais profunda e visceral, da qual todos nós participamos, pois ela é muito generosa para incluir todos nós em seus sonhos”, aponta.
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O autor de A civilização do espetáculo não perderia a chance de tascar “os desvios e traições” que dominam a arte ocidental.
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O esforço criativo, ele diz, cedeu ao sucesso ditado por curadores e galerias endinheirados.
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O escritor vê “artistas sem escrúpulos — palhaços no fundo — que esqueceram […] algo que é o mais importante […]: inventar formas que renovam e consolidam a tradição.”

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50 anos de uma oração à paz (vídeo inédito)
Tudo o que estamos dizendo é: deem uma chance a paz.
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Give Peace a Chance, pois é, tornou-se uma oração ou hino pela paz, contra a Guerra do Vietnã. O vídeo abaixo foi postado nessa terça-feira (13/04).
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A gravação possivelmente é a mais antiga dessa música. Ao lado de Yoko Ono, Lennon ensaia a canção no hotel Sheraton Oceanus, nas Bahamas. Era 25 de maio de 1969.
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Alguns dias depois, dia 31, Give Peace a Chance seria apresentada ao público no hotel Queen Elizabeth, em Montreal, no segundo Bed-in, ou “cama da paz”, meio que o casal adotou para dar seu recado em coletivas de imprensa. O primeiro Bed-in ocorrera em Amsterdã, em março do mesmo ano, durante a lua de mel do casal.
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Um acontecimento
André Mehmari e Ná Ozzetti – Piano e voz, espetáculo de 2006 que se seguiu ao CD de um ano antes, é um dos maiores acontecimentos artísticos desde século. Pois a gravação do show acaba de reaparecer no Youtube em versão remasterizada. Os dois artistas, com carreiras nocauteadas pela pandemia, pedem em troca “ingressos espontâneos”, a quem queira e possa colaborar.
Salve o homem
Morreu em 4 de outubro do ano passado, aos 87 anos. Quanta saudade. O Instituto Moreira Salles colheu em vídeo depoimentos sobre o escritor, crítico e jornalista Zuza Homem de Mello. Poucos como Zuza ensinaram tão bem a ouvir música, e conseguiram instilar conhecimento e paixão pela música popular brasileira e pelo jazz. Ney Matogrosso, João Bosco, Maria Bethânia e Zé Renato aparecem no documento. A produtora cultural Ercília Lobo, mulher de Zuza, fala do entusiasmo que ele dedicava ao trabalho e, nos últimos tempos, à Playlist do Zuza, programa da Rádio Batuta que teve 157 edições semanais.
Nove vezes Billie outra vez
“Ouvi-la cantando [dói], mas também provoca encantamento”, diz Luiz Fernando Viana ao apresentar nove gravações de Billie Holiday. O programa da Rádio Batuta é de abril de 2015, em seu centenário de nascimento. Celebrar a cantora, cuja história marcada por tragédias terminou aos 44 anos, é tarefa de uma vida para quem gosta de jazz. “Selecionamos nove torch songs, músicas de destruir o coração, aquelas que Billie sabia interpretar como ninguém”, diz Viana.
A MPB NÃO PRECISA DO PORNÔ PARA TRANSAR
Muito antes do funk e do pagode pornográficos, antes do chorume supersônico uivante e dançante, a “elitista” MPB era capaz, ainda é um pouco, de falar de sexo com recursos mais ou menos poéticos, conforme o repertório cultural e o talento de um compositor.
*
Sempre houve refinamento, elegância e atestado de letramento.
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Você podia escutar Nelson Gonçalves cantar Quem há de dizer (Alcides Gonçalves e Lupicínio Rodrigues), sobre o dilema de alguém tirar ou não a amada da zona e levá-la par um lar, ou Roberto Carlos, em Detalhes, agourar a ex na cama com outro cabeludo, quando ela, “desesperada”, vai “tentar até o fim”.
*
Podíamos até, veja a leitora, veja o leitor, pegar uma brincadeira de dois poetas franceses, o Sonnet du Trou du Cul, de Rimbaud e Verlaine, e, sem perder a linha, compor uma canção de sexo explícito gay chamada Soneto-do-olho-do-cu.
*
Toda pornografia denuncia uma falta de recursos, quando não mera perversidade.
*
A pornografia é uma traição em forma e conteúdo a uma arte popular nascida como lenitivo e celebração da vida. Os inventores do blues e do jazz, do choro e do samba prescindiram de educação formal para fundar sua arte. Graças a eles essa tradição pôde ser elaborada e recriada, desde os morros aos conservatórios.
*
Mas nunca antes essa tradição havia sido sepultada por desprezo e ignorância como agora.
*
Mas chega de blá, à lista da semana.
1 — Por baixo (Tom Zé)
Do álbum Canções eróticas para ninar, lançado por Tom Zé em 2016 com “urgência didática”. A gravação do autor é ótima, mas a outra versão que aí vai com Roberta Sá e André Mehmari é do balacobaco. A letra fala por si.
Por baixo do vestido
A timidez
Baixo da timidez a seda fina
Baixo dela uma nuvem de calor
Baixo desse calor
Um perfume da China
Por baixo do perfume a rede elétrica
Baixo da rede elétrica os pelos
E por baixo dos pelos as estradas
Que conduzem nos fios
Os teus arrepios
Manifestos em ois! e uis! e ais!
Lá aonde a razão não chega mais
E por baixo de tudo
O que me deixa mudo,
A tua franqueza toda nua,
Que se veste de luxo
Em pele crua
Breque: Veste tudo outra vez
2 — Nosso estranho amor (Caetano Veloso)
Do álbum Olhos felizes, de Marina Lina (Ariola, 1980), em sensualíssimo duo com Caetano. O amor livre sem a sombra do ciúme, em que cada qual se deleita com quem for. A canção deixa o corpo falar por si desse ideal erótico.
3 – Rapte-me camaleoa (Caetano Veloso)
Conta Caetano que a música foi feita para Regina Casé. Está no encarte Sobre as letras, do livro Letra só. Os dois namoraram um pouco. Regina, que fizera a personagem Camaleoa numa peça do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, era de uma beleza excruciante. As histórias sobre as letras de Caetano de Canô podem ser ouvidas aqui. Essa tem achados como a rima bilíngue em “rapte-me, adapte-me, capte-me, it’s up to me”, além desta cena explícita: “Leitos perfeitos/ Seus peitos direitos/ Me olham assim/ Fino menino me inclino/ Pro lado do sim”. Do álbum Outras palavras, de 1981.
4 – Vera gata (Caetano Veloso)
“Puro carinho e precisão/ Eficiência, técnica e paixão”, diz a letra, e o compositor imodesto continua: “E teve que ser rápida a transação/ Pois já nos chamava o ônibus/ (…)/ Tivemos tudo, não faltou nada/ E ainda a madrugada nos saudou na estrada/ Que ficou toda dourada e azul.” No livro citado Caetano de Canô diz que a letra é “totalmente autobiográfica, e declara seu caso com uma então menina Vera Zimmermann. Outra transa musicada de Outras palavras.
5 – Como dois animais (Alceu Valença)
Valença, nosso grande clown, ensina como se pode chegar às vistas de fato musicalmente sem escorregar no chulo, e como gozar a representação do erotismo em melodia e palavra: “Foi mistério e segredo/ E muito mais/ Foi divino brinquedo/ E muito mais/ Se amar como dois animais”. Do LP Cavalo de pau (1982).
6 – Caso sério (Rita Lee e Roberto Carvalho)
Em 1980, dois românticos de cuba-libre se achavam “empapuçados de amor numa noite de verão” entre um “misto quente” e um “sanduíche de gente”.
7 – Valsinha (Chico Buarque e Vinícius de Morais)
Devia ser pulsações adolescentes, mas recordo um amigo comentar, ao ouvir a faixa rodar em Construção (1971): “Mas que meterola é essa música, hein?”. Aludia esse amigo à recompensa do casal por tanta espera, de que fala a letra, quando a cidade inteira se iluminou com “tantos beijos loucos/ Tantos gritos roucos como não se ouvia mais”. O mundo tinha mesmo que amanhecer em paz.
8 – O meu amor (Chico Buarque)
Lúcia (Elba Ramalho) e Teresinha (Marieta Severo) disputam a preferência de Max Overseas (Otávio Augusto) em cena tórrida do espetáculo teatral A Opera do malandro, musical de Chico Buarque dirigido por Luís Antônio Martinez Corrêa, de 1978. Chico adaptou o clássico de John Gay (Ópera do mendigos) e Bertold Brecht e Kurt Weill (A ópera dos três vinténs). Geni e o Zepelim, que podia estar nessa lista, é da mesma peça.
9 – Mar e lua (Chico Buarque)
Das mais belas canções populares já compostas em qualquer idioma. O “amor proibido” entre duas mulheres é retratado em tintas simbolistas. A melodia evoca uma pintura — a marinha de uma cidade distante do mar e sem luar. No entanto uma das amantes “andava tonta, grávida de lua”, e outra “andava nua, “ávida de mar”. Ouço novamente as gravações de Mônica Salmaso, Toninho Horta, a muito marcante de Simone (menos a de 1980 que a de 1993) mas a versão autoral de Chico Buarque, do LP Vida (1980), ainda é o padrão ouro dessa composição escrita para a peça Geni. O arranjo de Francis Hime cria um fundo precioso de cordas que realça a atmosfera onírica da canção.
10 – Soneto-do-olho-do-cu (Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, adaptação de Zé Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond)
Sonnet du Trou du Cul, pastiche escrito pelos namorados (que por pouco não se mataram) Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, ganhou tradução do escritor Marcos Silva. Pastiche pois se trata de uma imitação do estilo de outro poeta francês, o parnasiano Albert Mérat. A versão adaptada por Zé Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond recebeu música de Zé Miguel Wisnik, tal Soneto-do-olho-do-cu, assim hifenizado, e conta de seu primeiro álbum, lançado em 1992. Não, nada de citação dessa letra num jornal familiar.
Até mais ver, e obrigado pela leitura!
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