Jurupoca_90 – 24 a 30/09 de 2021
Hebdomadário de cultura, ideias e alguma
lenga-lenga sobre a desordem do mundo
(Foto do alto)
Beatriz S. Pereira, Fernanda Cabral e Marina MBtto: Leste, espelho e barra de metallon, 200 x 300 cm, instalação do projeto Arte na Praça Vinicius de Moraes, São Paulo, 2011. Foto do autor da JU
São Paulo (Sumpa) — Opa, vamos apear. Ora, vamos!
Anjos tronchos, a canção, e o clipe da nova música de Caetano Veloso, são o fato cultural mais relevante de há muito neste país pauperizado e esculhambado.
Caetano acertou a mão em uma de suas críticas-do-mundo (canções com um pé filosófico) como não lograva desde Outras palavras, Estrangeiro, Língua, sei lá.
Um dos nossos velhinhos geniais da MPB (extremamente enxuto) é quem tem algo que preste a dizer aos meninos.
Não vão entendê-lo, é certo. Vão desprezá-lo. Acho que vão ignorá-lo, por velhusco, ou por, meninos, terem engolido inteiro e ainda cru o mundo sobre o qual Anjos tronchos liricamente diserta, alerta .
Vivemos, afinal, na era das bolhas, dos selfies e reels, tal troca no mercado dos afetos de uma ilusão sobre a ilusão de uma ilusão.
Ele próprio, Caetano, canto-colou muito antes em Sampa: Narciso acha feio o que não é espelho (e os Narcisos dominaram a Terra).
Invenção, poética, postura de um artista vigoroso e lúcido, nada falta em Anjos tronchos.
Os anjos tronchos (e decaídos?) do Vale do Silício deixam profundos rastros da destruição criativa e da mutação da vida que perpetraram: a superaceleração produtiva, a perpetuação do presente e a extinção do passado (“No tempo em que havia tempos atrás”).
“Agora a minha história é um denso algoritmo/ Que vende venda a vendedores reais,/ Neurônios meus ganharam novo outro ritmo/ E mais e mais e mais e mais e mais”, diz a letra.
A música ganha potência no clipe belamente transado, com graça e beleza como há muito eu não via nesse gênero precocemente esclerosado pela repetição; como há muito não deparava versos assim: “Ah, morena bela estás aqui/ Sem pele, tela a tela:/ Estamos aí.”
Caetano anota a história recente: vendedores “mi, bi ou trilionários” que pretenderam consertar o mundo viram o “horror” dar lugar à Primavera Árabe.
Mais tarde ajudariam decisivamente a fustigar a democracia (“Palhaços líderes brotaram macabros/ No império e nos seus vastos quintais”) empoderando Trump, Vibrião Colérico e outras figuras nefastas e daninhas que constrangem a condição humana (“Disseram: vai ser virtuoso no vício”) .
Pois estamos aí, ô morena bela sem pele, tela a tela, entre azuis mais que azuis.
Hela-hô-hôôô… helahô-Hôôôô
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô… Ghi — …?
|SEMIBREVES|
Outra vez na Bienal
A arte, que já pretendeu chocar a burguesia, há muito (e desde muito contemporânea) tenta agradar a consciência ressentida de quem vai a museus e feiras de arte como para atender a um compromisso de cidadania. A 34ª Bienal de São Paulo, nesse sentido, é grandemente déjà-vu. Sua pedagogia não encanta e não espanta. Vamos à bienal como o católico (não muito fervoroso) vai à missa.
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A arte assumiu as causas corretas e se converteu à defesa do bem, anotei ao comentar o ensaio Salvajes de una nueva época, do colombiano Carlos Granés, na JU#18.
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Predomina na Bienal, como dizia Ferreira Gullar, a expressão, ou excesso de discurso, como a ausência de linguagem e valoração estética. Quando há linguagem (desenho, pintura, gravura, escultura), o observador pode ao menos prescindir da prédica direcionadora, dos modos de usar contidos nas bulas (nesta Bienal, a propósito, estranhamente dispostas a menos de um metro do chão, ilegíveis, portanto, para corpos menos flexíveis.)
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A típica instalação discursiva (seja o mero objeto ou a parafernália ideada pelo artista) não fica de pé sem conceituação, sem a “tradução” curatorial a guiar nossa apreensão e a nos converter em fiéis de sua missa pagã.
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“Aproveitando-se da confusão e da superabundância de arte e artistas” — eu citava do Granés na JU#18) — o curador “se mostra como a pessoa capaz de pôr ordem em um galinheiro ruidoso e saturado”.
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A ideia semirreligiosa de inclusão e resgate vitimário, que nesta Bienal é tematizada como “resiliência, esperança, comunicação” — me parece um apaziguamento do progressismo com o mercado (entre seus parceiros consta, vamos ver, um Instituto Cultural Vale, instituição que apoia a Fundação Renova na reconstrução da imagem da empresa, depois de Bento Rodrigues e de Brumadinho — com seus passivos ainda abertos). O que antes denotava rebeldia, hoje recende a uma nova modalidade de conservadorismo.
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Desde o urinol de Duchamp (1937), estagiando no cocô na lata (Merde d’artist, Pietro Manzoni, 1961), até, digamos, e cá entre nós, os urubus na gaiola (Nuno Ramos, 29ª Bienal de São Paulo, 2010), a arte contemporânea está cada mais melancolicamente monótona, quando não lembra o mero playground (nem tanto adulto), ainda que valha fábulas nos circuitos internacionais mais engajados.
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Os novos “espaços expositivos” se não são condescendentes, são dependentes do evangelismo tecnológico solucionista do Vale do Silício.
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Muito da ordem da desgraça humana que defrontamos ou nos aguarda no futuro, a emergência climática, os possíveis efeitos colaterais da biotecnologia, a uberização, o lado negro das redes sociais (por exemplo no impulsionamento do populismo, na clave de Anjos tronchos), ou a própria desvirtuação das promessas fundadoras da internet, até onde sei, nada disso inspira a realização de artistas contemporâneos.
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Artistas, um dia chamados de “antena da raça” por Ezra Pound (e por isso tributado por Marshall McLuhan), por terem o dom de antecipar o que só vai se conformar plenamente em uma ou duas gerações, se tornaram demasiadamente dependentes dos roteiros ideológicos do passado.
Na Praça
Daniela, doce anfitriã, ademais estrela da televisão, apresenta à sogrinha e ao sogrinho a Praça Vinicius de Moraes. Manhã de segunda-feira como jamais haverá outra no Morumbi. Nosso passeio oferece souvenires. Guardo num embornal de pano o canto-coral dos sabiás, insones operários do amor em setembros urbanos, e sibipirunas há pouco amarelecidas. A praça que homenageia o poeta é cheia de “canções, aventura e magia” (deixa que ele nos deixou em Testamento). Tem o colírio untuoso do capim para limpar nossos olhos cansados desde a retina. É o que me permite notar, abaixo, um brejinho de taboas meio ressecado, mas, creia-me, ainda mais surpreendente (abstraído naquele remanso da civilização concreto-asfáltica) que as instalações do projeto Arte na Praça, mais acima. Não que não me encantam; encantam sim, pois há instalações e instalações, se o generoso leitor me concede. Há uma obra chamada Leste, um espelho a refletir o oeste e defletir (diria o Caetano: um arco, um elo) Poética, poema-síntese de Vinícius que termina naquela abertura para o mundo: — Meu tempo é quando; outra das obras, um círculo de redes em cores vivas, ao ar livre, disponíveis a quem quiser descansar ali a beleza, além do corpo, chama-se Redes sociais; e, à la Magritte, a porta fechada sem paredes Por metonímia, no entanto bem ali, escancarada à poesia. A bênção, poeta.


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