Jurupoca_104 | 10 a 16/6/2022
Hebdomadário de cultura, ideias e
alguma lenga-lenga sobre a desordem do mundo
Foto do alto: George Orwell em foto da BBC. Domínio público.
O sonho é ter tudo dissolvido — o corpo, a mente, a fonte da lembrança. —
Não mais o esperma e o óvulo da morte; não mais a incerteza do binário — um tempo liso sem o fuso horário. —
Gilberto Gil, como a bossa nova, é foda. Não é de hoje, mes fils. —
Senhores, bem-vindos a bordo deste diário sem cabimento. —
Fala a verdade: conseguiu entender que raios é NFT, tal do token não fungível, e o papel do trem para o progresso humano? —
Humanos seremos NFTs, no sentido translato? Mais ou menos? Ou depende do ser humano, né? —
A Jurupoca, por exemplo, seria pois, então, assim como um NFT? ou trata-se antes de um diário reles, desavergonhado, inautêntico? Cartas (sinceras) para a redação. —
George Orwell trabalhou na rádio BBC. Achava o serviço um saco, consciente da escassez do interesse nos altos programas culturais que oferecia à audiência do império britânico. Mas defendia que o jornalismo da estatal “era uma fonte melhor de notícia do que os jornais diários”. —
“Era impossível” — argumentava, lemos em Orwell: um homem do nosso tempo, de Richard Bradford, “fazer um jornal inteligente ser rentável, porque o público quer lixo.” —
Bradford cita o próprio escritor:
“Ao permitir que sua profissão fosse degradada, [os jornalistas] agiram em grande parte com os olhos abertos, ao passo que, suponho, culpar alguém como [o] magnata britânico do ramo dos jornais, fundador dos [diários] Daily Mail e do Daily Mirror] por ganhar dinheiro da maneira mais rápida possível é como culpar um gambá por feder.” —
Em 1984, os “proletas” são “asfixiados”, nas palavras de Bradford, “pela estupidez recreacional massificada” oferecida pela baixa cultura — itens como astrologia, pornografia, loterias e romances baratos, então. Hoje podemos pensar em notícias fraudulentas, romances baratos como 50 tons de cinza, pornografia, fofocas sobre a vida de celebridades, games, séries fajutas, novelas, realities, selfies, Instagrans e tais, turismo de rapina etc. —
A democracia, que derrotara o fascismo e se fortalecia contra a ameaça soviética e de seus satélites, podia ser corroída por dentro e até se transformar na distopia que, no romance de Orwell, anulava Winston Smith? A indagação cabe numa leitura de 1984. —
Para Orwell, o enfrentamento da pobreza, desigualdade e da alienação que acarretam só podia ocorrer por meio da “acumulação secreta de conhecimentos — uma gradual expansão do esclarecimento.” —
Conforme a clara perspectiva do livro de Bradford, é difícil pensar em outro escritor mais presciente sobre o estado geral do mundo, agora mesmo, que George Orwell — morto aos 46 anos das consequências de uma tuberculose crônica, em 1950. —
Em artigos e ensaios, Orwell atacou a imprensa sensacionalista, a banalização da violência, a aceitação do autoritarismo (ainda que disfarçada pelo “duplipensar”), a cegueira ideológica e o incentivo à burrice geral do chamado grande público, ou da opinião pública se quisermos. —
O espaço antes ocupado pelos jornais populares foi ampliado ao infinito pela internet e as mídias sociais. Cada usuário da rede pode ser ele mesmo um editor ou divulgador de “notícias populares” e chorume cultural. —
O que ele disse sobre os jornais populares ecoa nas mídias sociais, quando sugere, diz Bradford, que vendem mais “porque alimentam o oposto da inteligência: populismo, mau gosto vulgar e distorções da verdade.” —
O que dizer da ordem algorítmica (publicitária) por trás das publicações caça-cliques? —
Orwell, quem cunhou o termo Guerra Fria, foi voz isolada no final da guerra, por perceber no que daria o domínio soviético no leste europeu, no acerto encoberto com os aliados Churchill e Roosevelt. Josef Stalin àquela altura era incensado pela imprensa inglesa e norte-americana, para não falar da francesa. —
Seu romance A revolução dos bichos foi recusado pelas grandes editoras justamente por furar a bolha de ilusões e simpatia à URSS. Calava-se sobre a facilitação de Stalin a massacres alemães na Polônia, por exemplo, ou quanto à certeza de Orwell de que o domínio soviético resultaria, depois de Hitler, em outra forma de totalitarismo. Esta citação, do livro de Bradford, se encaixa nesse contexto, mas também ecoa o espírito de intelectuais e jornalistas que hoje se deixam podar e se dobram aos ideólogos mais influentes nas redes sociais, ou a ditaduras e governos autocráticos, como fazem, irmanados, JMB (Vibrião Colérico, por transmitir a cólera entre sua gente movida a desinformação) e o PT em relação a países como China, Rússia, Cuba, Venezuela, El Salvador. —
“Lembrem-se de que a desonestidade e a covardia sempre cobram seu preço. Não imaginem que por anos a fio vocês possam fazer o papel de bajuladores propagandistas do regime soviético […] e depois, de repente, voltar à decência mental. Uma vez prostituta, sempre uma prostituta.” —
Você duvida que Orwell, hoje, seria um notório cancelado? —
O Grande Irmão (Big Brother) de 1984 — romance tão contemporâneo se olhamos para China, Rússia, Coréia do Norte e além, — foi diluído ao infinito como uma fórmula homeopática, e deglutido como paçoca pelo entretenimento de sucesso planetário criado na Holanda. No Brasil deu no BBB da Globo. Experimente um Google com a expressão. Orwell sentiria náuseas ao ver sua criação abastardada pelo chorume cultural idolatrado por multidões em todas as classes sociais. Gênio que era, entenderia. É que não se pode culpar um gambá, no caso brasileiro a Globo, por feder. Já certos jornalistas supercultos que, como apresentadores, topam tudo por dinheiro, me parece que não. —
O inferno humano reside grandemente na privação de sono. —
A insônia difrata o real e expõe em carne viva o que é tormento, dúvida e dor. Há quem não suporte essa tortura. —
Depois de dois anos e tanto de pandemia, um fim de semana na velha fazenda que guarda a memória e a presença de meus vivos e mortos. —
A fazenda está um brinco. —
Assistir à tarde cortejar a mata ao fundo do rio, roçá-la com a maciez adolescente da luz invernal desde o pé à franja das mais altas árvores, até se entregar à noite, como que pela primeira vez. —
Não sou eu quem repete… A nota supra me lembrou, ao fuçar arquivos deste Diário de Viagem, a meu Em um quarto da Fazenda Cachoeira, que diz quase o mesmo, quiçá inté mió. —
Ao que leio, o crescimento vegetativo da população de colibris, como, por certo, a de aves-do-paraíso, perde feito para o de influenciadores digitais no Brasil. —
Na Folha, Ruy Castro ironiza reportagem acrítica do jornal com a revelação de que o Brasil tem 500 mil influenciadores, quase o mesmo número que o de médicos, e duas vezes mais o de arquitetos. —
Nunca vi um influenciador em ação. Como será que “influenciam”? (influenciar no Houaiss: “exercer uma ação psicológica, uma ascendência sobre alguém ou algo ou deixar subjugar-se por esta ação”, mesmo que “inspirar”). —
Pô, meu. —
A tão propalada tribalização ou guetização do mundo por preferências culturais é fenômeno ponderável. Os 1,5 bilhão de verba publicitária derramada periodicamente nas redes sociais certamente não contempla muito “conteúdo” que exija grande esforço mental para ser absorvido, o que torna o público uma massa amorfa, indiferenciável. —
Leio sobre o papel das “fazendas de cliques”, contratadas para inflacionar a adesão a este ou aquele influenciador. Quão admirável é o mundo novo. —
Da lama à merda, da merda à merda. —
Por favor, não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim. —
Orwell era um peçonhento. Quando o antissemita e propagandista do fascismo Ezra Pound, autor de Os cantos e ABC da literatura, é capturado por militares na Itália, em 1944, ele diz — escreve Bradford — “ter a esperança de que os norte-americanos não o matem a tiros por traição, já que seu martírio poderia levar algumas pessoas a achar que seus poemas eram bons.” —
Donde minha esperança-paráfrase de que as moiras nos poupem de mais desastres fatais com artistas sertanejos. Não resistiríamos a novas tentativas de a mídia nacional provar que o que esses astros e estrelas fazem é a melhor música do mundo. —
Prefeituras de cafundós como Mar Vermelho (3.474 almas), em Alagoas, banhados por esgoto a céu aberto, divertem sua gente pobre com shows de celebridades sertanejas que cobram cachês milionários, livres de quaisquer despesas. Deu no Estadão. —
O mercado do chorume cultural sertanejo envolve um cipoal de mamatas, “emendas-pix” de congressistas e certamente desvios ainda mais cabeludos de dinheiro público. —
Ô, mas nossas praias são tão claras, nossas flores são tão raras… Isto é o meu Brasil. Meu, seu e de Ary. —
Ô, mas nossas fontes, nossas ilhas e matas, nossos montes, nossas lindas cascatas, Deus foi quem criou, Ô, ô. —
O sertanejo que, sim, podia ser chamado de música, quando ainda se confundia com a originalidade caipira, é a trilha sonora do golpismo, já se sabe, e evolui no compasso da decadência cultural no país. —
O sertanejo se perpetua ao canibalizar todos os ritmos, do samba ao reggae, do axé ao xote — e rebaixá-los ao chorume em escala industrial. —
Cada era tem a antropofagia e o tropicalismo que merece. —
E ao tatibitate, que cairia melhor em Braille: os reis do balido, arautos de primeira hora das sandices de JMB (tratado aqui por Vibrião Colérico porque transmite a cólera contra a imprensa e a democracia), são tribunos da desinformação sobre a Lei Rouanet, lei que, boa ou má, ao menos obriga seus contemplados a prestar publicamente conta de cada tostão auferido da renúncia fiscal. —
Um rei do balido declarou, às lágrimas de crocodilo: “Não compactuo com dinheiro público”. Oxente, hômi, seu menino, o chiste soaria melhor em texto do Seu Bertoldo Brecha, na Escolinha do Professor Raimundo. —
Mas não se pode culpar um gambá por feder, não é mesmo? —
Decadentes e com lucros em queda, emissoras de TV caroneiam o quanto podem no já pra lá de eterno sucesso do sertanejo. Alguns veículos podem mais que outros, é certo. —
Na Globo, o Fantástico já dedicou até metade de suas edições aos contratados do gênero pela Som Livre, antes de a gravadora do conglomerado ser vendida à Sony. —
E o negócio ainda é tiro certo para faturar facinho pontos de audiência, mas não se pode culpar… —
Guarde um beijo pra mim sob as dobras do blusão. —
Eu quero um copo de cerveja no seu copo, no seu colo e nesse bar. —
Na “escalada” de quinta-feira passada, o Jornal Nacional brindou certa audiência com mais uma epifania reveladora das maiores inspirações de nossa época, uma de suas maiores “influências”: “Anitta ganha estátua no museu de cera…” —
Quase prorrompi em lágrimas. —
Estatelei intransitivo de ufanar-me com meu país. Quis soltar rojões, tocar a vuvuzela, sair a correr nu pelas ruas, o que melhor bandeirasse meu contentamento com a evolução do pop e da world music e, em especial, com o jornalismo cultural no Brasil. —
Mas não. Desliguei a TV, fazia frio, e me recolhi cedo às cobertas. —
Antes, telegrafei ao doutor P. pelo WhatsApp do Zuckerberg: “Acabo de incitar o diretor de redação do maior jornal das redondezas: Parem as máquinas! Por quê? Ora, Anitta ganha estátua no museu de cera Madame Tussauds de Nova York!” —
O doutor P. contrapôs, a somar: “Pois sim! Deveriam publicar como manchete de primeira página em letras garrafais. Com direito a um pequeno jornaleiro gritando: Extra! Extra! Cantora Anitta ganha estátua no museu de cera!”
Não se pode culpar um gambá por feder, né não? —
Claro, a novidade sobre a grande estrela Anitta — campeã da world music, ícone eterno da juventude, heroína de causas (e redes) sociais, pitonisa da salvação planetária pela diversidade e nova padroeira do Brasil — seria a chave dourada a escancarar o Fantástico, no domingo seguinte. —
A estátua de cera de Anitta está para o sertanejo,
como o pênis ereto e a raiz quadrada de -1
para o chulé do populismo global lacaniano. ENTENDA. —
O que tiver de expelir, pedra, poema, pereba, é, sim, não, ohs, ahs e anhs, cairá neste diário terrível. —
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Votar contra o JMB (ou Vibrião Colérico, por transmitir a cólera entre seus partidários) e seu campo ideológico brucutu é um dever ético e civilizatório. —
Já o esforço demandado a quem é fiel a seu dever civilizatório raia o sobre-humano, ao suplício de Sísifo, em 2022, e cobrará doses maciças de remédio para enjoo. —
O esquerdismo, carimbado por todos os vícios do lulopetismo, ouriçado como um porco espinho a disputar a granja com um gambá, assedia quem é fiel à consciência civilizatória como uma legião de demônios a perseguir Jesus Cristo no deserto. —
E não contamos com pai, filho nem espírito santo para nos empoderar. —
Mas ¡no pasarán! —
É que sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher; sou a mesa e as cadeiras deste cabaré. A Jurupoca também é um mal necessário? Nonada. —
Ideólogos de esquerda e direita vivem de propor a distribuição da riqueza, cujas bases são incapazes de criar. A conta que vá para os que vão nascer, quem sabe com financiamento do FMI. É o chulé do populismo. —
A essência do chulé: nós somos o povo dadivoso, eles, as elites-assombração, os chupa-cabras. —
Hela-hô-hôôô… helahô-Hôôôô —
Cada dia é mais raro encontrar na Folha algo que mereça ser lido com atenção. Mas as inglória pescaria do leitor rendeu um peixe bom no último domingo, o texto dos professores Andrew Curran e Kenneth David Jackson sobre Denis Diderot. —
Os autores, que ensinam em universidades dos EUA, apontam com clareza a antevisão de Diderot sobre problemas de nossa era como o fanatismo e a crise ambiental, e sua grande influência em Machado. —
O ensaio cita uma das frases preferidas de Diderot, proferida até a véspera de sua morte: “O ceticismo é o primeiro passo em direção à verdade”. —
Decorada e apreendida por extremistas de direita e radicais de esquerda chafurdados na bile populista, assistiríamos à cura de um grande número de fanáticos. —
Não é preciso ser um analista de comunicação — como hoje os jornalistas são chamados — especialista em métricas de redes sociais para afirmar que artigos como esse sobre Diderot não têm saída, não dão cliques como os lucrativos conteúdos-chorume, portanto, devem ser contabilizados como prejuízo para as empresas de mídia e, ao cabo, extintos de vez. —
Por fim, não se pode culpar um gambá… —
Crianças cor de romã entram no vagão. —
Este diário traz um quê de místico, um sem-não-quê, um sem-propósito além da alma. —
A Jurupoca, a seu modo, é um diário público com alguns leitores de classe. Talqualmente é rito de aposentadoria e despedida. —
E não sou eu quem repete esta história, é a história que adora uma repetição. (Rebichada – L. Enriquez Bacalov, Sergio Bardotti e Chico Buarque)—
A Rádio Siutônio segue no ar. Dilui-se ao longo do diário, em pílulas de felicidade. O formato antigo — uma trabalheira, sô! — não me trouxe glória alguma. —
Minha emissora pericárdica emitia aulinhas de MPB. Pena que não tenha me rendido banha de porco, farinha de Suruí, pinga de Parati e fumo de Baependi — pra modi cumê, bebê, pitá e caí. —
Mas a rádio inda toca estados d’alma, como diz o primo, “flutuações de querências, buscares e achares da beleza”, em palavras dele, primo Siutônio. —
Aquele abraço pra quem fica. —
E parabéns a quem conseguiu navegar até aqui. —
Quem deveria recompensá-lo com piscadela de pix sou eu! —
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô… Ghi — …? —
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