Jurupoca_51. 11 a 17/12/2020. Ano 2
LISBON REVISITED (1923) – Fernando Pessoa em fase Álvaro de Campos Não: não quero nada Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia! Ó céu azul — o mesmo da minha infância — Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). / ARQUIVO PESSOA
Opa! Vamos apear? Ora, vamos!
Eta dezembro brabo. Tá craude bro. É menos mês que menstruação. O comercial do Chester Sadia pede um Sal de Fruta Eno Tutti Frutti para descer. E ninguém bebeu nada, ainda. A coisa não alui, só isso. Não é mais novembro e ainda não é janeiro, e o intermezzo é uma caçoada dos infernos.
A mensagem de fim de ano da Globo é outro porre de tubaína. Quanta celebridade criança esperança! no Projac e no Jardim Botânico a brincar de costas pra ela, a roda-dança da morte carioca.
Helahoho! helahoho!
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô… Ghi — …?
A morte de Michael Corleone
Coppola aplainou a compreensão de seu grande filme, ao remontá-lo como desejavam ele o roteirista Mario Puzzo, a quem o título em inglês homenageia. O final da saga O poderoso chefão ressurge fresco e inteiro, capaz de recompor a alma desconsolada de um amante do cinema. Os urros da dor de Michael na escadaria do teatro, diante do corpo morto de Mary, a filha preferida que lhe dava sentido ao viver, nos provoca compaixão por um ser humano monstruoso, assassino do próprio irmão, do filho de seu pai e de sua mãe, como ele diz ao confessar, numa explosão de choro, ao cardeal que logo se tornaria o trágico João Paulo I. Como escreve Javier Cercas, “é esse (…) o lugar eticamente equívoco a que a grande arte nos conduz, e com a qual, precisamente por isso, nos enriquece, permitindo-nos vislumbrar, de nosso posto de leitor ou espectador, áreas de experiência às quais muito provavelmente, felizmente, nunca teremos acesso, e de outra forma nem ousaríamos espreitar”.
Ópera mafiosa
Coppola e Puzzo, neste final, durante e depois da encenação de Cavalleria Rusticana no teatro de Palermo, realizam o epílogo de sua própria ópera sobre a máfia, paralelamente à de Pietro Mascagni, e ao mesmo tempo revelaram no cinema a grande beleza do gênero que já foi a mais popular das formas de representação e hoje perdura praticamente como memento, lembrança, para o deleite de poucos aficionados. Mas talvez a própria arte hoje sobreviva como lembrança em um mundo que afinal conseguiu destruir todas as idealizações do espírito.
A pedofilia com RP
As relações públicas, braço da comunicação social engajado com quem pode pagar pelo serviço, também atendem a um gigante como o Pornhub: 3,5 milhões de visitas por mês, entre as dez maiores potências da internet e à frente de Netflix, Yahoo e Amazon. O portal ajuda cidades a limpar a neve das ruas e investe em instituições antirracistas. Durante a pandemia liberou conteúdo grátis para favorecer o isolamento social. O conglomerado de vários canais de pornografia, com quartel general no Canadá e sede fiscal em Luxemburgo, está infestado de vídeos de estupro e violência contra adolescentes. Essa história é contada em reportagem de Nicholas Kristof, colunista do New York Times. Como no Youtube, os usuários podem postar seus vídeos pessoais na plataforma. Meninas apaixonadas gravam vídeos para namoradinhos pilantras que vão parar nas teias do Pornhub, como estoques de cenas de mulheres no banho ou no vestiário tomadas por câmeras espiãs. No Pornhub é fácil baixar esses vídeos e compartilhar com colegas de ginásio. Depois disso se tornam eternos na internet. Kristof relata tragédias pessoais de crianças terminadas em abandono, dependência química e suicídio. O feminista prafrentex Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, acusa Kristof, não move uma palha para expulsar o antro bilionário de seu higiênico país.
Espelho
A excitação pornográfica é o reflexo necessário de um mundo deserotizado.
Um sonho!
A sonhada democratização da informação com o advento da internet se realiza plenamente na pornografia.
Retratos da pandemia
Sem a distração das viagens internacionais e o turismo de shopping, a pandemia expõe a insignificância de quem não sabe o que fazer da vida.
E passa a récua!
O Corona Kung Flu continua matando, e a récua —coletivo de bestas, o mesmo que canzoada, farândola, cáfila ou parranda — não se dá por vencida. O general da banda e da Saúde vai à frente da comitiva, logo atrás do guia, Sua Excrescência presidente Jumentíssimo, o Franco, e do colega do Meio Ambiente, um adventista dos Santos do Aquecimento Global. Em seguida no tropel avistam-se o bonecão inflável que governa São Paulo, os líderes do Senado e da Câmara, os garantistas e os manobristas da Constituição e todas as autoridades civis e militares do Rio de Janeiro. O governador das Minas do Matos Gerais, Zema-Zen, trota firme no cortejo, mas fica na moita. É difícil saber onde ele está e o que anda aprontando, cê besta!
Abaixo o espanhol!
Uma récua nacionalista e extremista luta na Espanha para abolir o espanhol! Esses supremacistas — se acham mais puros e melhores que os outros — querem impor o euskera e o catalão sobre a língua de Cervantes. A depender da lei, vão conseguir. Só faltam queimar literatura espanhola em praça pública. Mario Vargas Llosa comenta e lamenta cada ato dessa opereta macabra.
A Vale em Marte
Marte é bem feiosinho. O planeta parece ter infinitas jazidas de minério de ferro. Deviam mandar a Vale pra lá. Faria muito bem a Minas, à paisagem que resta e a quem vive perto de suas barragens.

Lobo mau, uma fábula pandêmica
Em seu passeio bem contente pela estrada afora até Tiradentes, ainda no meio do ano, o correspondente desta Jurupoca descreveu uma cena futura: quem enchia bares e daí, baladas, era o lobo mau em pessoa. O malvado acabaria por levar o Corona para a vovozinha, adocicado por carinhos e beijinhos.
Data vênia (1)
Como todo analista político sabe, a suprema corte tem ministros garantistas e manobristas da carta magna. O maior dos garantistas é o novato “Nosso Kassio”, cujo lema reza: “Mateus, primeiro os teus”. Um garantista, claro, pode se tornar de repente manobrista e vice-versa.
Data vênia (2)
Para o ministro Gilmar Mendes, o comentarista político e pop star Reinado Azevedo é “Nosso Reinaldo”. E Reinaldo, ao mesmo tempo, é um garantista quanto a Gilmar e um manobrista no que tange ao garantista “Nosso Kassio”, e vice-versa.
Tudo um saco
Não se vende mais disco, streaming é uma roubada, direitos autorais raramente bancam luxos, e o Corona barra a realização de shows. Alguns artistas entraram na pinda pra valer. Os mais sensíveis se irritam ao fazer lives, de onde ainda tiram algum, como as promovidas pelos canais do Sesc e Blue Note. Há quem tenha que alimentar famílias numerosas, já na terceira geração, de candidatos ao estrelato. Sem falar de quem descobriu, graças ao Corona, as delícias do engajamento e as maravilhas das redes sociais. Como Raul, acho tudo isso é um saco: engajamento, fã-clube e o colunismo de rede social, que nos atualiza sobre quem posou de pijama ou fez bundalelê no sítio.
Ah, cuá.
É preciso tocar o barco. Para 2021, prometo que me reinvento e me reciclo. E saio da zona, da zona de conforto!
Vale a pena ver de novo


«O triunfal regresso de Sonny Rollins. Yahvé M. de la Cavada escreve no El País sobre o lançamento de Rollins In Holland, gravações de 1967 em excelente estado, recuperadas com a supervisão do saxofonista de 90 anos, o maior do músicos do jazz ainda vivo, e lançadas em LP triplo e CD duplo.»
Último Noel
Nana Caymmi canta — e como canta — Último desejo, de Noel Rosa (originalmente faixa A2 do LP Chora brasileira, de 1985).
E Paulinho da Viola interpreta — e como interpreta — Pra que Mentir, de Noel e Vadico (faixa B1 do LP Memórias cantando, de 1976).
O acompanhamento de Hélio Delmiro (violão) e Rafael Rabello (7 cordas) envolve a voz de Nana Caymmi como um presente luxuoso, e Nana é capaz de transitar de um grave sensualíssimo a um quase sussurro. O efeito é segurar a música no espaço, enquanto a ouvimos, como num chiaroscuro de Rembrandt.
Último desejo é a segunda das 10 canções de Noel mais buscadas na rede. Foi muito e esplendidamente gravada por Aracy de Almeida, Isaurinha Garcia, Bethânia, Gal, Ney Matogrosso, o português António Zambujo, como fado, (inclusive juntos, Zambujo e Ney, num encontro memorável)… muita gente bamba.
O samba foi composto em 1937, mesmo ano, ou começo de ano, de Pra que mentir, veja você, com a Indesejada das gentes batendo à porta de Noel, debilitado pela tísica, para finalmente entrar em 4 de maio. No mesmo ano foi gravado por Aracy de Almeida, em julho, e lançada pela Victor em maço de 1938, conforme o site Discografia Brasileira (IMS).
Pra que mentir, registrado por Silvio Caldas em 1938, também pela Victor, veio a público em fevereiro do ano seguinte.
Há inúmeras boas versões, como a magnífica de Caetano Veloso, mas Paulinho da Viola, acompanhado apenas pelo violão do pai, César Faria (Benedicto Cesar Ramos de Faria), adentra o território do sublime.
Dizem os biógrafos de Noel que essas duas canções se inspiraram, como outras em sua obra, na mocinha Ceci, dançarina de 16 anos do Apollo, um cabaré da Lapa carioca, que ele conhecera em 1934.
As letras não por acaso se tornaram clássicas, patrimoniais.
A aguda dramaticidade de Último desejo só é superada por estes versos de Pra que mentir: “…Se tu sabes que eu te quero/ Apesar de ser traído/ Pelo teu ódio sincero/ Ou por teu amor fingido…”.
ÚLTIMO DESEJO – Noel Rosa Nosso amor que eu não esqueço E que teve o seu começo Numa festa de São João Morre, hoje, sem foguete Sem retrato, sem bilhete Sem luar e sem violão Perto de você me calo Tudo penso e nada falo Tenho medo de chorar Nunca mais quero seus beijos Mas meu último desejo Você não pode negar Se alguma pessoa amiga Pedir que você lhe diga Se você me quer ou não Diga que você me adora Que você lamenta e chora A nossa separação E às pessoas que eu detesto Diga sempre que eu não presto Que meu lar é um botequim Que eu arruinei sua vida Que eu não mereço a comida Que você pagou pra mim PARA QUE MENTIR – Noel Rosa e Vadico Pra que mentir Se tu ainda não tens Esse dom de saber iludir? Pra quê? Pra que mentir? Se não há necessidade de me trair? Pra que mentir, se tu ainda não tens A malícia de toda mulher? Pra que mentir Se eu sei que gostas de outro Que te diz que não te quer? Pra que mentir Tanto assim Se tu sabes que eu já sei Que tu não gostas de mim? Se tu sabes que eu te quero Apesar de ser traído Pelo teu ódio sincero Ou por teu amor fingido.