Para quem acompanhou no blog minhas crônicas de viagem e os capítulos do livro que adiantei em vários posts, aí está: acabo de parir o rebento, que se põe a chorar e a clamar por leitores como você.
O livro sai por meio do KDP, a ferramenta de autoedição da Amazon, disponível por enquanto apenas para os Kindles da marca.
Turismo cultural e literário na Europa – 65 Destinos: Propostas, Relatos e Diários de Viagem, o nome do livro, do meu livro de viagem, uma razão de ser deste blog.
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Como sabe quem lê nessas caixinhas, o interessado pode baixar uma amostra grátis das obras em formato eletrônico, antes de se decidir pela compra.
Esta edição reúne minhas pesquisas, anotações, leituras e reflexões sobre o que chamo, humilde e modestamente, a arte da viagem, de 2005 a 2019.
Os textos mais recentes são crônicas de Copenhague, Berlim e Trieste, que adiantei aqui e depois atualizei e ampliei para entrar no livro.
Abaixo, compilo os destinos que surgem ao longo do trabalho em crônicas, ideias, diários e até poemas!
Predominam, como se pode ver, trajetos pela Espanha, Itália e Portugal. Mas as referências literárias, artísticas e históricas se espalham pelo continente.
Vizinhança da Gernersgade, na área de Sankt Pauls, Copenhague. Foto: Antônio Siúves
ALMA ROÍDA
Ainda tenho a
alma roída pelo frio de Copenhague.
Roída também
pelo vento sem tréguas dum fim de semana de março.
Alugamos um apartamento em Sankt Pauls, a meia hora de caminhada até Nyhavn, a área central da cidade. Os amigos, mais jovens, fizeram questão de ir a pé a toda parte, na intempérie, a testar minhas forças. Aguentei firme, mais ou menos.
CHOQUE E “RU-GA”
É sobretudo a pé que conhecemos as cidades e a maneira como a vida se organiza e se distingue no seu espaço e tempo.
Estive em outras cidades ricas de mesmo porte, ótimas para morar.
Ainda assim,
Copenhague aplica em quem a conhece uma boa descarga de civilização.
Percebo a
capital dinamarquesa como a conjugação ótima entre passado e presente projetada
no futuro.
A palavra dinamarquesa Hygge (pronuncia-se RU-GA) é intraduzível.
Expressa bem, a meu ver, o estado de arte da cultura e da vida social de Copenhague.
A cidade conforma
no seu cotidiano noções enraizadas de elegância, higiene, conforto e bem-estar,
ou, se quisermos, de vida plena — ou que pode ser plena.
Está aberta
ao mundo ma non troppo.
A riqueza foi
convertida em meios de educação, transmissão cultural e aprimoramento constante
da sociedade.
Talvez por
isso sua gente sempre se coloque entre as primeiras no Relatório Mundial da
Felicidade, divulgado pela ONU.
HAVNERINGEN
A vida é cara para chuchu em København.
Um copo de
vinho no mercado de Toverhallerne pode custar o equivalente a 10 euros, ou
quase 50 pratas.
Coroas
dinamarquesas dissolvem como ácido reais depauperados.
As pessoas
são muito educadas, amáveis e prestativas, ainda que, naturalmente, distantes.
A segurança nunca é ostensiva e praticamente não se nota a presença de policiais nas ruas.
Não se ouvem
buzinas e bicicletas imperam como gaivotas em toda a ilha.
Trecho de Havneringen. Foto: Antônio Siúves
Um circuito (ou pista) portuário (Havneringen) com ciclovia e via para pedestre de 13 km de extensão (subseções de 2,4 km e 7 km) foi concluído há alguns anos.
Não há como um brasileiro não se sentir em outro planeta estando ali, ainda mais se conta com as graças do sol por dez minutos.
Marco com informações da Havneringen. Foto: Antônio Siúves
Um dos marcos da pista é a ponte para pedestres e ciclistas Cirkebroen, entre Christianhavn e a área de Applebys Plads.
A estrutura formada por cinco plataformas circulares foi desenhada pelo artista dinamarquês Olafur Eliasson, bem conhecido no Brasil.
Duas de suas obras podem ser vistas há tempos no Inhotim, em Brumadinho:
A instalação com uma fonte iluminada por luz estroboscópica contida num iglu de fibra de vidro chamada “By Means of a Sudden Intuitive Realization”, e “Viewing Machine”, o enorme caleidoscópio em aço inoxidável.
BLOX
Estivemos no Blox, o edifício com estrutura retangular revestido de vidro escuro que é um centro de arquitetura e muito mais. O projeto foi encomendado pela OMA Ellen van Loon ao escritório do célebre arquiteto holandês Rem Koolhaas.
Para o “The Guardian” o lugar aspira a ser uma cidade sob um único teto com museu, escritórios, academia de ginástica, restaurante e moradias. O café que se projeta sobre o canal estava fechado.
Era domingo
e apenas a academia funcionava.
Não havia
porteiro ou vigilante para barrar a curiosidade de visitantes estrangeiros.
“O lugar
todo é um microcosmo do espírito dinamarquês e sua inventividade urbana”, definiu
apropriadamente o diário inglês.
Vista do Blox, edifício projetado pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas. Foto: Antônio Siúves
DIAMANTE NEGRO
A linda Biblioteca
Real da Dinamarca, conhecida como Diamante Negro, é uma aula magna revigorante
de arquitetura arrojada, funcionalidade, valor social conferido à educação e
respeito ao patrimônio histórico.
O conjunto abriga
um acervo de publicações que começa no século 17 e departamentos da
Universidade de Copenhague.
Na parte
moderna (Diamante Negro) havia muita gente num sábado à tarde. Estudantes
circulavam pelas salas e no simpático café.
Um corredor com
paredes de vidro claro, que se acede por escada rolante, tem o teto decorado com
belos afrescos.
A Diamante Negro vista desde o canal (à esq.) e um souvenir da Biblioteca Real da Dinamarca, em Copenhague Foto: Antônio Siúves
A passagem atravessa por sobre extensa via urbana para juntar o edifício moderno, de 2006, ao prédio centenário da antiga biblioteca. Li alhures que Lenin labutou em suas mesas pelos idos de 1910.
CARRO DE SOL
Revi por acaso, no Museu Nacional da Dinamarca (obrigatório para quem se interessas pela civilização viking) a preciosa joia de puro deleite que é o carro solar de Trundholm, artefato de 1.400 a.C.
A delicada peça havia me encantado sete anos atrás, ao encontrá-la na exposição “Bronze”, organizada pela Academia Real de Londres.
Carro solar de Trundholm, artefato datado de 1.400 a.C. Foto: Antônio Siúves
Encontrado por fazendeiros dinamarqueses em 1902, quando aravam a terra, o objeto representa o deus Sol, ou Sunna, na mitologia nórdica. Nele, conforme o mito, um cavalo puxa diariamente o sol de leste a oeste.
MATISSE E OLIVETTI
Já o Museu
do Desenho é um compêndio sobre como imaginação, arte e técnica forjaram a
aparência e o uso dos objetos desde o modernismo.
O acervo reúne exemplares históricos de cadeiras e poltronas incorporadas ao cotidiano universal (ovo, Eannes etc.) a motores elétricos, de roupas e sapatos a móveis, de utensílios de cozinha a imagens icônicas da arquitetura moderna e pós-moderna.
Com uma igualzinha atravessei os últimos anos da adolescência perseguido pela poesia e me iniciei no jornalismo.
Obra de Henri Matisse no Museo do Desenho, em Copenhague. Foto: Antônio Siúves
Quase verto outra ao entrar na sala dedicada a tapeçarias e colagens de Matisse. Comparo estas à densidade da música de João Gilberto, na qual a aparente simplicidade das formas e a escolha das cores escondem um longo caminho percorrido na história da arte.
Me lembrei
do ensaio de T.J. Clark publicado na “Serrote” #18. No resumo que encabeça o
texto diz-se que “O Matisse das colagens dramatiza o conflito entre pintura e
decoração que marca as relações dos ideais modernistas com o espectador”. Na
mosca.
NO REINO DA LEGO
Fachada da loja Lego, em Copenhague. Foto: Antônio Siúves
A Dinamarca e Copenhague são o parque Tivoli, Hans Christian Andersen (“O Patinho Feio”,”A Pequena Sereia”, “A Roupa Nova do Rei” etc.), Søren Kierkegaard, mas também o reino da Lego.
Na loja da marca, em uma das ruas fechadas para pedestres no centro, você encontra kits exclusivos para presentear seu pimpolho.
Meninos que viajaram a outros planetas, deram a volta ao mundo, disputaram corridas de carro e enfrentaram bandidos, graças ao brinquedo, como o que batuca estas linhas, se sentem em Meca ao entrar na loja.
PARAÍSO DA MACONHA
Andamos feito malucos num domingo de manhã para conhecer Christianhavn, área bucólica de moradias de Copenhague onde fica Christiania — o célebre parque temático hippie, por assim dizer.
Chovia a cântaros
quando chegamos e nos abrigamos numa espécie de armazém coletivo dentro de um
galpão onde se comercia de um ao tudo.
Troquei um
punhado de coroas por um guarda-chuva imprestável que terminaria seus dias numa
lixeira de Berlim.
O uso da maconha
e seu comércio são livres em Christiania.
Na praça em
frente ao armazém entrei num pub maneiro para uma IPA.
Você tropeça
em cachorros enormes e pode se arriscar em máquinas caça-níqueis.
O olor da cannabis se espraiava numa densa onda comunal.
Por pouco a maré não me faz sair na chuva, como um Fred Astaire deslocado e extemporâneo, a improvisar o tema de “Hair”.
COMO SALVAR UM CHAPÉU
No Churchillparken, um basco arretado, o mais disposto entre nós, arriscou-se ao desembestar por um talude com quase 90 graus de inclinação para resgatar meu chapéu verde invernal que a ventania me roubava, acessório de muitas histórias deste que há anos o adquiri no Rossio lisboeta.
Por pouco o amigo não cai no gélido canal do mar do Norte e pega um resfriado.
Nunca esquecerei seu gesto na vida de minhas retinas tão fatigadas.
CENTRO DA CIVILIZAÇÃO
Alguém pode viver a mesma experiência em mil outros lugares. Ao flanar pela Vittorio Emanuele II, em Milão, e parar sob a imensa e estonteante cúpula da galeria com seus vitrais, me baixa sempre o espírito da civilização europeia, e percebo o legado iluminista que forjou ideais do belo e bom no Ocidente.
Pude percorrer a galeria (abstraia-se o shopping de alto luxo e os restaurantes turistosos) algumas vezes, inclusive à noite, depois de ouvir uma récita no Scala.
Vivesse em Milão, tentaria bater meu ponto ali diariamente.
A Galeria Vittorio Emanuelle II e sua cúpula. Foto: Wikimedia Commons
O monumental Duomo di Milano, ao lado da galeria, símbolo da cidade, não lhe é páreo em beleza e majestade.
MANTEGNA E BELLINE
Aproveitei meus poucos dias em Milão, hub desta viagem, também para ir duas vezes à riquíssima Pinacoteca de Brera, instalada num palazzo do século 18 neste bairro, onde me hospedei.
Uma enorme e régia biblioteca e centros de educação artística funcionam ali.
Me
concentrei na “Pietà” de Belline e, bem ao lado, na “Lamentação sobre o Cristo
Morto”, de Mantegna.
“Lamentação sobre o Cristo Morto” ( 1475-1478 ), de Andrea Mantegna. Foto: Wikimedia Commons
Dois passos da paixão na história da arte.
O Cristo de Mantegna é o deus mais humano que um grande artista jamais concebeu.
O Livro de Viagem publica amanhã o diário de Copenhague e Milão. O sentido de Hygge, palavra intraduzível que expressa o estilo de vida da capital dinamarquesa. Notas sobre arquitetura, arte e urbanismo, além de um palavra de carinho sobre a Lego. Em Milão, duas passagens pela Pinacoteca de Brera e o espirito do iluminismo na Galeria Vittorio Emanuele II.
Centro antigo de Nyhavn, em Copenhague. Foto: Antônio Siúves